Ah, se me deixassem apenas dormir
Com os pés no abismo e a alma em brasa,
Piro-me em Florbela, rasgo-me em Frida —
meus olhos sangram tintas que não passam,
minha carne, em febre muda, se liquida.
Carrego no peito um peso que não é pedra,
é punhal de ausência, é silêncio cru,
é um grito soterrado em boca selada,
é o choro que nunca vê a luz.
É névoa sem nome e cor,
é um vulto que se deita em meu leito,
me beija a fronte com hálito de dor
e me costura os sonhos no peito.
É uma morte que caminha viva,
um cansaço que atravessa o osso,
um eco que nunca finda,
uma ânsia de sumir no fosso.
Há dias em que não sou nem sombra.
Sou menos que o som do que fui.
Há noites em que até as lágrimas
Cansadas já não fluem.
Minha pele dói sem toque, sem motivo,
minha espinha verte memórias frias.
A alma, desbotada de adjetivos,
se arrasta entre os escombros dos dias.
Ninguém vê — sou toda disfarce:
risos cortantes, frases medidas.
Por dentro, um campo de guerra sem trégua,
por fora, moldura da vida fingida.
Ah, se me deixassem apenas dormir,
ser semente, pedra, nevoeiro,
evaporar do mundo sem rugir,
me fazer ausente num sopro inteiro.
Mas escrevo, com sangue, o que não digo.
Pinto com o corpo a dor que me invade.
Pois enquanto houver um traço comigo,
minha tristeza também é verdade.
E mesmo sem fé, me ergo em poesia.
Flor e ferida. Mulher e agonia.
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